Relatório do MapBiomas revela Pantanal reconfigurado em 40 anos


Maior planície de inundação contínua do mundo, o Pantanal perdeu 75% de sua área permanentemente alagada, o equivalente a 1,2 milhão de hectares, de 2015 a 2024. No ano passado, em que se viu a maior seca dos últimos 40 anos no bioma, a proporção tomada pelo ser humano para desenvolvimento das chamadas atividades antrópicas, como pastagem, aquicultura e mineração, chegou a 15,2% do bioma. 

Em levantamento divulgado nesta quarta-feira (12), quando se celebra o Dia do Pantanal, para valorizar os ecossistemas do bioma, da flora à fauna, do ar à terra, e para reforçar os avisos de preservação, o MapBiomas apresenta detalhes importantes. 

No documento, a rede de especialistas ressalta aspectos complementares como a interdependência entre Pantanal, Cerrado e Amazônia, ou seja, o impacto mútuo de destruição e recuperação entre eles. 

O Cerrado e a Amazônia concentram, respectivamente, 83% e 17% do planalto, relevo elevado que influi completamente no fluxo da água para a planície e, portanto, para o Pantanal, que corresponde à planície.

Produzido a partir da Coleção 10 de mapas de cobertura e uso da terra no Brasil, o material do MapBiomas alerta para a perda de vegetação nativa, no período de 1985 a 2024. O monitoramento considera a Bacia do Alto Paraguai (BAP), que compreende áreas do Mato Grosso (48% da BAP, 17,4 milhões de hectares, representando 19% do estado) e Mato Grosso do Sul (52% da BAP, 18,6 milhões de hectares, representando 53% do estado). 


Corumbá (MS) - 26/12/2024 - 100 fotos melhores de 2024, retrospectiva - Foto feita em  30/06/2024 - Tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, proteje seu ninho em meio aos incêndios florestais no Pantanal. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Corumbá (MS) - 26/12/2024 - 100 fotos melhores de 2024, retrospectiva - Foto feita em  30/06/2024 - Tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, proteje seu ninho em meio aos incêndios florestais no Pantanal. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, proteje seu ninho em meio aos incêndios florestais no bioma – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Selecionando-se somente um recorte do extenso e detalhado estudo, na BAP sul-mato-grossense o total foi de 3,2 milhões de hectares. No início da análise, as áreas naturais correspondiam a 79% do Pantanal, entrando em declínio até atingir 61% em 2024. 

Em seu planalto, o fator preponderante para a perda de 2,1 milhões de ha (40%) de vegetação nativa foi o crescimento de 5,9 vezes da agricultura, principalmente sobre áreas de pastagem. Na planície, o aumento da pastagem no decorrer dos anos resultou na perda de 1,1 milhão de ha de vegetação nativa.

Na BAP do Mato Grosso, a retrogradação ambiental foi ainda mais acelerada. Ao longo de 40 anos, registrou-se uma perda de 3,8 milhões de ha de vegetação nativa, com a porcentagem caindo de 80% em 1985 para 58% em 2024. Em seu planalto, o avanço da agricultura foi também muito agressivo, crescendo 216% (1,2 milhão de ha). 

A cultura que se sobressai é a de soja, ocupante de 80% da área total de plantações. A cultura da soja é criticada pelos ambientalistas por ser uma monocultura, isto é, reduzir a diversidade de espécies da fauna e da flora.

Ao todo, são seis as classes de vegetação, formações rochosas e hídricas: 

  • a formação floresta; 
  • a formação savânica; 
  • o afloramento rochoso; 
  • a porção de água -, que engloba rios, lagos, represas, reservatórios e outros corpos d’água; 
  • a formação campestre e 
  • o campo alagado e áreas pantanosa. 

Estes dois últimos equivalem a 51% e 3%, totalizando mais da metade (54%) do bioma.

As categorias de interferência humana são a pastagem, que ocupa mais de 2,2 milhões de ha (15%), a agricultura, com mais de 9 mil ha (0,06%) e a urbanização, com alta densidade de edificações e vias, que ocupa quase 6 mil ha (0,03%). A lista é completada pela mineração – aqui não entra o garimpo, e sim a extração de escala industrial -, com 1,5 mil ha (0,01%), a silvicultura, que se dedica ao cultivo de espécies arbóreas usadas para fins comerciais, como eucalipto, atualmente de 407 ha (0,02%), e a aquicultura, de lagos artificiais, que soma 57 ha (0,004%).

Na simplicidade e na força

Leonida de Souza, apelidada de Eliane, tem 58 anos de idade e já se destacou em sua comunidade pelo menos três vezes. Tornou-se, em 2000, a primeira mulher brigadista do Pantanal, após concluir formação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e é coordenadora da Rede Pantaneira e fundadora da Renascer, uma associação de artesãs. 

Modesta, porém, ela menciona que estudou até a 4ª série do ensino fundamental. Nascida em Poconé, no Mato Grosso, município com população de cerca de 31 mil pessoas, e filha de pescador, Eliane tem ascendência quilombola e é também indígena guató, mistura que não deixa de reivindicar e que, justamente por não abrir mão, provoca estremecimentos nas relações com parentes. 

Os guató têm diversas peculiaridades em sua história, que falam, por si só, sobre como os brancos os exterminaram. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), os guató tiveram que deixar sua terra por conta da apropriação de fazendeiros da pecuária, nas décadas de 1940 e 1950, principalmente. 

Esse povo, que antes habitava quase todo o sudoeste do estado e as margens dos rios Paraguai e São Lourenço, passou a viver em outros cantos do bioma e nas periferias de cidades como Aquidauana (MS), Cáceres (MT) e Corumbá (MS), onde Eliane foi registrada. Embora fossem apenas retirantes, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), correspondente à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), entendeu a evasão como completa e sinônimo de desaparecimento, classificando o povo guató como extinto. 

Em 1976, missionários encontraram guató na periferia de Corumbá, tirando-os dessa categoria da SPI. O ISA ressalta, ainda, que a língua guató já foi considerada isolada, mas que, refletindo melhor, se pode deduzir que antes da dizimação dos colonizadores podem ter existido outros povos originários no Pantanal, informação que não se confirma pela carência de pesquisas com esse foco.

Eliane assume que pessoas de fora da comunidade sugarem tudo que é possível do Pantanal, a persistente desigualdade social e a exploração de sua família sempre a revoltaram. Por isso é que ficou 9 anos longe, mas retornou quando a distância de suas origens ficou insuportável. 

“Não consegui viver fora do meu habitat, viver na cidade”, resume Eliane, que advoga pela cultura tradicional de seu povo.

A expectativa de Eliane com a primeira ida à zona urbana, com 5 anos de idade, acompanhada da mãe, era grande. Imaginava que teria contato com coisas “esplendorosas”. Contudo, sentiu-se mal com os olhares de pessoas com ar de superioridade. Voltou para casa decidida a se alfabetizar e ter uma educação formal. Seus planos de aumentar o nível de escolaridade não tiveram o final esperado, inclusive, por uma gravidez na adolescência, e até hoje sonha em ser especialista em uma área bastante agradável e absorvente da biologia. 


São Paulo (SP), 12/11/2025 – novo relatório do MapBiomas revela bioma reconfigurado em 40 anos.
Foto: Eliane/Arquivo pessoal
São Paulo (SP), 12/11/2025 – novo relatório do MapBiomas revela bioma reconfigurado em 40 anos.
Foto: Eliane/Arquivo pessoal

Leonida de Souza, apelidada de Eliane, em 2000 se tornou a primeira mulher brigadista do Pantanal – Foto: Eliane/Arquivo pessoal

 

“Eu sou maga floresteira de coração, desde pequena. Se eu tivesse estudo, queria ser botânica, para aprender sobre as plantas. As árvores são os berços dos pássaros e uma horta, um jardim de plantas, flores, frutos alimentam todos os tipos de vida, porque cada árvore tem o seu papel dentro do nosso planeta. E essas vidas vão alimentar outras vidas. É um ciclo que acho tão fantástico. Se não existirem as árvores, não existe água e, se não existir água, não existem as árvores, os bichos nem nós”, define.

A indígena guató afirma já estar verificando diversos sinais da mudança climática e dos efeitos de certas atividades econômicas na comunidade, que, para ela, são quase ou já irreversíveis. Os sinais que especifica são a falta de chuvas, o baixo nível dos rios da região, o mau desenvolvimento de peixes, o elevado assoreamento (acúmulo de sedimentos na água, o que reduz o nível da água e também sua profundidade) e o calor extremo. 

Ao final do verão deste ano, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)  divulgou um balanço sobre a situação em alguns estados e biomas. Nele, o Pantanal foi mencionado como uma das áreas mais atingidas pela crise hídrica e pelo agravamento dos incêndios florestais dos últimos 2 anos e com maior dificuldade de regeneração, apresentando solo seco e queda na produtividade de grãos. Em tempos normais, o inverno é bastante seco e o verão quente e chuvoso, e é nesse equilíbrio que se mantém operante o pulso de inundação.

O diagnóstico confirma o que os olhos de Eliane captam e as alarmantes previsões feitas por sua comunidade. “A seca é muito grande, as plantas não conseguem sobreviver. Nós não temos capacidade de comprar uma grade com trator, para fazer a adubação da terra, porque, se tem bastante folha seca, a gente pode trabalhar a terra. Antes a gente não precisava disso. Se o solo estava morto aqui, a gente largava e ia para outro canto, plantava, colhia à vontade, tanto para a gente como para os animais”, relata. 

“Hoje, para plantar, o lugar não é seu. É área particular, é não sei o quê. Tira toda a liberdade da população pantaneira para viver. Nossos pais faziam queimada para poder plantar e esse fogo não passava para a casa do vizinho. É muito estranha essa forma do fogo de hoje. A gente plantava melancia, abóbora, tudo quanto é coisa. Feijão, arroz. Minha mãe tinha uma plantação enorme de amendoim. A gente não comprava açúcar, não comprava farinha. Se fosse fazer um creme, tinha batata, tudo. Hoje não tem nada disso. É tudo tão precário, tão miúdo, tão diminuído. A gente tem que sofrer muito para fazer uma roça e ir para frente”, lamenta.

Nada ingênua, a líder comunitária demonstra apreensão com pessoas de fora que vão construindo amizades ali por terem interesses ocultos. Ela narra uma situação em que tentaram fechar um negócio de mercado de carbono com a comunidade, em um processo, segundo Eliane, sem nenhuma transparência e honestidade com as lideranças. Um aliado seu foi quem traduziu para ela a conversa em outro idioma que teve com um representante da empresa, escancarando sua real intenção. Apenas um dos casos de cheque em branco que tentaram  lhe empurrar.

Fogo como receita

Vinculado à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Núcleo de Estudos do Fogo em Áreas Úmidas (Nefau) implementa o Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração no Pantanal (Peld). Seu coordenador, o docente Geraldo Alves Damasceno Junior, explica como funciona o chamado fogo prescrito: a queima prescrita é uma técnica usada na prevenção de incêndios florestais. Seu objetivo é reduzir o volume de biomassa existente em determinado perímetro, evitando que eventuais incêndios se alastrem de modo descontrolado, isto é, diminui aquilo que pode servir de combustível. De modo simplificado, é como tirar lenha da fogueira para baixar o potencial destrutivo das labaredas.

Segundo o catedrático, os habitantes do bioma ainda estão aprendendo a manejar o fogo “na forma legal”. No site do Nefau, os pesquisadores ressaltam a parceria feita com brigadistas do Prevfogo do Ibama e do Corpo de Bombeiros para descobrir em qual época o fogo prescrito traz melhores resultados. 

“Dentro desse ciclo de seca que a gente está passando, o que acontece é que você tem áreas no Pantanal que têm muita biomassa acumulada. E, quando estava tudo cheio, formando muita biomassa, veio um ciclo de seca, e tudo que estava embaixo dela fica disponível. Se alguém toca fogo pequeno no quintal e ele se espalha, se torna um grande incêndio nessas áreas que antigamente ficavam alagadas”, explica Damasceno Junior.


Brasília (DF) 12/11/2025 – Hidrelétrica Teles Pires no Pantanal.
Foto: Hidrelétrica Teles Pires /Divulgação
Brasília (DF) 12/11/2025 – Hidrelétrica Teles Pires no Pantanal.
Foto: Hidrelétrica Teles Pires /Divulgação

Hidrelétrica Teles Pires, no Pantanal – Foto: Divulgação

Como um dos principais indícios de derrota ambiental no bioma, o docente aponta as hidrelétricas, uma vez que um dos parâmetros mais relevantes para se ter ideia se o bioma anda saudável é o volume de água disponível. 

“Coisas que são prejudiciais para o Pantanal são essas hidrelétricas que o pessoal está erguendo lá em cima. A gente está com menos água no sistema e põe hidrelétrica, que não deixa a água fluindo livremente para o sistema. Então, o sistema começa a entrar em colapso, em relação à quantidade de água que está entrando. E, entrando menos água, o Pantanal deixa de ser Pantanal. Aí, é um ponto de não retorno”, avalia. 

No Mato Grosso, a primeira hidrelétrica foi inaugurada há quase um século, em 1928. Informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dão conta de que utilizou as águas do Rio da Casca. 

Arranjos de monitoramento

A diretora-geral da Mulheres em Ação no Pantanal (Mupan), Áurea Garcia, se mostra favorável a ferramentas como o diálogo e a fusão de estratégias para fazer a defesa do bioma. 

“Diferentes ações, desde aumentar a capacidade de comunidades locais para a restauração, de forma a trabalharmos a conservação inclusive. E desenvolvemos também ferramentas para garantirmos a manutenção do bioma, como o Sistema de Inteligência do Fogo em Áreas Úmidas (Sifau)”, salienta a especialista, que também é coordenadora de Políticas da Wetlands International Brasil.

O Sifau está ativo há exatos 2 anos e foi desenvolvido pela Wetlands International Brasil e o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com apoio do projeto Nefau, da UFMS. 


Corumbá (MS), 29/06/2024 - Com o auxílio de aviões, brigadistas do Prevfogo/Ibama combatem incêndios florestais no Pantanal. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Corumbá (MS), 29/06/2024 - Com o auxílio de aviões, brigadistas do Prevfogo/Ibama combatem incêndios florestais no Pantanal. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com o auxílio de aviões, brigadistas do Prevfogo/Ibama combatem incêndios florestais no Pantanal – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Concebido para prover informações atualizadas a governantes e a analistas ambientai, emite alertas de áreas queimadas, o que permite acompanhamento do fogo em tempo quase real e dimensioná-las; previsões de perigos meteorológicos de fogo, antecipando o cenário em seis 6 dias; mensagens sobre o uso e a cobertura do solo, criadas a partir da congregação de dados do MapBiomas, relativos, por exemplo, a áreas convertidas para a agropecuária e mesmo para áreas naturais; e sobre material combustível, com imagens do satélite Landsat, que indica a biomassa superficial disponível para queima.

“Neste Dia do Pantanal, fazemos um chamamento para que governos, organismos internacionais, olhem também para esse bioma como ímpar na manutenção dos ecossistemas, da interconectividade e da qualidade de vida das pessoas e do ambiente”, pede a representante da Mupan, que viajou à COP30, em Belém, no Pará. 



Fonte: Agência Brasil

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